Sud Express



Embarcámos em Vitória-Gasteiz e não sabíamos nada um do outro. Como sempre, armei-me de silêncio e de um livro para garantir uma viagem tranquila. Por timidez (?) falo cada vez menos com estranhos, mas com ele não foi assim. Com somente seis palavras em castelhano já havíamos percebido que éramos brasileiros. Deixei-lhe que escolhesse a liteira. Ele me disse que qualquer uma estava bem. Instalei-me e já me preparava para continuar com a leitura do livro Os demónios, de Dostoiévsky, quando inesperadamente sem se aperceber que eu tinha o livro nas mãos, ele começou a me contar a sua história utilizando o idioma de Riobaldo. Então parei o que ia fazer e ouvi, com a mesma atenção que pretendia dedicar à história dos revolucionários russos do século XIX, a narração daquele rapaz saído do interior das Minas Gerais para “ganhá mundo” e encontrar um lugar só seu no meio de tanta indelicadeza globalizada. Dizia-me: “Eu nem sabia o que era passaporte. Tinha umas trampa pra ir pros Estados Unidos e vim pará no Portugal e depois Espanha.” Acrescentou que foi muito difícil aprender a suportar a grosseria dos chefes, falou da depressão do seu irmão que voltou ao Brasil e que sua mulher, paraguaia, para a semana que vem já ia obter a nacionalidade espanhola. Mas que abandonava tudo e voltava para o Brasil. Imediatamente pensei num amigo romeno onde o tudo que tinha depois de quatorze anos em Portugal cabia numa mala. Meu companheiro de viagem sorriu e me disse que a situação no Brasil estava melhor, “mas gosto tanto da Espanha”, e completou com essa frase o quadro de contradições em que esteve prisioneiro. Querer ir e ficar, quem é que nunca passou por isso?

Neste momento, comentei-lhe sobre a dificuldade que enfrentamos na regularização dos papeis e que se calhar era mesmo melhor voltar ao Brasil. Mas disse isso um pouco para não deixá-lo sozinho e, logo em seguida, deslizei o meu olhar para a página 426 do livro. Hora e meia depois disse-lhe boa noite e sonhei que voltava a uma dessas terras que só temos nos sonhos.

Às 07h15 o comboio chegava à estação do Oriente onde ele descia. Ao despedirmo-nos, disse-lhe que daria uma grande alegria à sua mãe que o esperava no interior de Minas, eu que quase nunca telefono para a minha mãe. Ao vê-lo descer, sozinho, com o seu “tudo” dentro da mochila, pensei em como vou, aos poucos, me desumanizando das pessoas e entregando a minha delicadeza aos livros. Dei-me conta disso agora que escrevo, porque sequer tive a amabilidade de lhe perguntar o seu nome, e dizer-lhe o meu.

Amanhã o meu jovem Riobaldo já estará entre os seus, e sobre mim somente me resta o céu de Lisboa.

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