Solidão em três tempos





Sob o céu da cidade com dois nomes um homem caminha sozinho rumo à casa. Anestesiado, não vê a encenação dramática de nuvens convertidas em chamas, de pássaros sem direcção precisa e da velha em cadeira de rodas que parece ter sido abandonada à sua sorte. O homem caminha “para o nada”, segundo o seu próprio juízo. Em casa, à mesa, nunca tem companhia.

A velha de aspecto frágil, desamparada, pensa nas maldades adolescentes que cometeu antes da guerra. E uma espécie de brilho satânico desenha na sua face devastada um sorriso em forma de gozo que a faz tremer de satisfação: “A minha irmã era uma boba romântica que lia muita poesia; e gostava tanto daquele canário. Mas eu não tive pena, matei o bicho.” E como por magia, emerge da sua própria sombra outra mulher, mais nova, que começa a empurrar a cadeira.

Maria veio da Bolívia com uma promessa de futuro. Rapidamente aprendeu que as palavras “promessa” e “futuro” transportavam a mesma densidade de enganos que havia conhecido em sua terra natal, e faziam-lhe recordar o milho apodrecido nas intermináveis noites de frio em Cochabamba. O Mundo era impiedoso em qualquer língua ou latitude, sem compaixão por canários ou poesia.

Maria empurrava a cadeira, a velha sorria enigmática e o homem caminhava para o nada sob um céu já desbotado na cidade de dois nomes.


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